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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Me identifiquei com essa matéria, também adoro inventar...

Lembrei daquela campanha publicitária de Neston, existem mil maneiras de preparar Neston, invente uma !

Cheiro de açúcar nas ruas
Com seis anos de idade, Maria Luiza Ctenas começou a fazer invenções culinárias nas casas das tias em Goiás Velho, onde havia despensas repletas de doces feitos com as frutas do quintal. A cidade é famosa pelas doçarias, que espalham seu inconfundível aroma pelas ruas. Essas imagens imortalizaram-se em versos de Cora Coralina, poeta e doceira. "São as imagens mais fortes da minha infância."

Seduzia os pais a provar, muitas vezes a contragosto, suas invencionices adocicadas. Adulta, formou-se em nutrição e passou a ter como hobby colecionar cadernos de receitas culinárias, todas manuscritas, algumas delas do século 17.

Um dia, ela inventou, em São Paulo, um sorvete de vinagre. E, com ele, ganhou o direito de fazer invenções numa inesperada cozinha, cujo ambiente em nada lembrava o ar artesanal e provinciano das doçarias de Goiás Velho: a cozinha do McDonald's. A partir de então, começou a rodar o mundo.

Maria Luiza fez pós-graduação em nutrição na USP e tornou-se professora. Montou uma cozinha experimental, onde testava receitas para empresas. Executivos do McDonald's comentaram que enfrentavam um problema quando precisavam levar convidados a jantares ou almoços de negócios, pois tinham de optar por outros restaurantes. "Propus a eles que desconstruíssem suas famosas receitas e, com os mesmos ingredientes, oferecessem pratos sofisticados."

Para mostrar o que significa desconstruir, ela serviu a todos o tal sorvete de vinagre. A proposta foi aprovada ali mesmo. Logo passaram a pensar sobre quem seria o sommelier capaz harmonizar a comida com o vinho. "Tudo começou como uma espécie de brincadeira."

Com o nome de McGourmet, a brincadeira transformou-se em produto de exportação.

Numa mesa preparada com todo o requinte para a degustação, sentavam-se as "cobaias" do experimento de Maria Luiza. Ao lado do sommelier, que mudava o vinho a cada prato, ela servia iguarias como um seviche de McFish com sorvete regado ao molho Big Mac, rolinhos de Chicken Grill recheados de tomate e de queijo mozarela com molho de Coca-Cola ou mesmo estrogonofe de legumes com croûton de McFish -sem falar na salada, que recebeu a espuma picante da Fanta Laranja.

O creme de ervilhas com farinha de bacon e torrada de pão Cheddar McMelt veio acompanhado de um vinho De Martino 327 Sauvignon Blanc.

Mais jantares foram se repetindo em várias partes do mundo. Maria Luiza foi chamada pelo McDonald's para treinar cozinheiros da China, dos Estados Unidos, da Itália e da França nas especialidades do McGourmet, reproduzindo, assim, suas experiências. "Já inventei 246 receitas."

Ela vem sendo estimulada a abrir um restaurante, mas não se anima com a ideia. "Gosto mesmo é de inventar." Para Maria Luiza, mudou a paisagem e sumiram as cozinheiras artesanais com seus tachos de barro, mas, pelo jeito, ela continua a mesma a menina, seduzida pelo cheiro doce das ruas de Goiás Velho.

Gilberto Dimenstein

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Os ''bunkers'' da cidade de São Paulo

Gilberto Dimenstein

Os ''bunkers'' da cidade de São Paulo

O melhor da cidade de São Paulo está num "bunker" de 520 metros quadrados e paredes de 1,90 metro de largura, construído para evitar o vazamento de radiatividade. Inaugurado neste mês, esse espaço, que fica no Hospital das Clínicas, abriga uma máquina capaz de detectar precocemente um tumor ainda em estágio molecular.

O projeto foi desenvolvido em parceria com o Sírio-Libanês e o Instituto do Câncer Octavio Frias de Oliveira. Neste, aliás, desenvolveu-se uma técnica inovadora para reduzir os efeitos da quimioterapia com o uso da acupuntura.

Sem entrar nesse tipo de "bunker", é impossível conhecer a engenhosidade de São Paulo. O que ocorreu neste fim de semana, com a Virada Cultural, quando a cidade sai às ruas e exibe seus talentos, é, na vida local, uma raríssima exceção.

No geral, São Paulo é uma cidade com muros de catracas e crachás, distante da rua.

Na quinta-feira passada, na vizinhança do espaço que abriga a máquina que detecta câncer, num pequeno auditório do subsolo do Masp (outro desses "bunkers"), discutia-se arte, urbanismo, tecnologia da informação e o futuro das cidades.

Graças aos recursos tecnológicos, que propiciaram a conexão com plateias de Manchester (no Reino Unido), de Istambul (na Turquia), de Sendai (no Japão) e de Vancouver (no Canadá), era como se todos compartilhassem o mesmo espaço.

A poucos metros dali, quase no mesmo nível de solo, a tecnologia promovia o encontro de jovens que resolveram tirar a roupa dentro do metrô.

Para entender São Paulo, é preciso observar como esses "bunkers" da modernidade convivem com a explícita barbárie, visível nas ruas. Barbárie foi a chacina de mendigos que ocorreu no bairro do Jaçanã na semana passada. Ou o fato de ocorrer, a cada 15 dias, um estupro numa escola pública (até numa creche já houve estupro).

Se a avenida Paulista é um símbolo da cidade, as crianças e os adolescentes que formam territórios do crack também o são. Criaram uma verdadeira cidade dentro da cidade, a chamada "cracolândia".

O movimento mais interessante de São Paulo é a resistência dos "bunkers" contra a barbárie. Na sexta-feira, foi lançado, durante a conferência do Ethos (entidade voltada à responsabilidade empresarial), um movimento de algumas das empresas mais importantes do país para apoiar projetos na cidade. A ideia é que trabalhem sobre metas comuns. O conceito de bairro educador vem sendo desenvolvido em favelas como Heliópolis e Paraisópolis - nesta, aliás, começa a ser montada uma orquestra sinfônica.

Se, de um lado, vemos a barbárie nos indicadores das escolas públicas paulistanas, de outro vemos crescer o número de "bunkers" de algumas das melhores cabeças da cidade pensando e tramando sobre como melhorar o ensino. Cresce o número de empresários que apoiam a gestão de escolas, bem como o de entidades que estudam e propõem soluções educacionais e articulações nacionais. Desse encontro, saiu a ideia de mobilizar o país para atingir uma educação de qualidade até 2022, quando se comemorará o bicentenário da independência.

Áreas como a praça Roosevelt e o Baixo Augusta, onde imperava apenas a marginalidade, tornaram-se "bunkers" para o lançamento de novos talentos da música e do teatro.

Neste fim de semana, podemos apreciar a efervescência da vida cultural paulistana, quando as multidões dominam as ruas, e os talentos se apresentam em palcos a céu aberto. Espremem-se, quase lado a lado, nomes que vão de Sidney Magal a Céu, passando por Pitty e pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, em meio ao desfile de fãs fantasiados como os heróis de histórias em quadrinhos e vídeos japoneses.

Neste ano, a diferença é que ocorre uma ocupação da "cracolândia", onde foram instalados palcos de dança e música erudita, de modo que Schumann e Tchaikovski se misturam com os meninos do crack.

Na semana passada, foi anunciado o consórcio que ganhou a licitação para realizar o projeto de reurbanização da região. Alguns dos arquitetos recuperaram áreas deterioradas de Manchester e San Francisco (EUA).

Está aí a síntese do problema paulistano, com seus "bunkers" de resistência: vamos ficar mais próximos da música nas ruas ou dos meninos do crack?

PS - Podem me chamar de ingênuo, mas a minha vivência cotidiana nessa resistência me permite apostar na vitória da cidade. Cada vez mais pessoas influentes entram nesses "bunkers" de civilidade, todas incomodadas por viver em meio ao caos e ao medo. Cresce a sofisticação do capital humano, além de aumentar a escolaridade - e isso não combina com a barbárie das ruas.